terça-feira, 6 de abril de 2010

Invisíveis

Todo bairro e até pequena cidade tem um maluquinho andarilho. Cada um tem uma mania. Em Mogi das Cruzes, onde nasci e tá 90% da minha família – pelo menos a que eu conheço – tinha um que andava ‘dirigindo’ pelas ruas com uma tampa de panela, imitando volante. Dizem que foi atropelado. Uau! Ele diria que tinha sido um engavetamento.

Quando eu era menor (siiim, eu já fui menor que isso!), tinha um no bairro que eu vivia. Lembro do apelido dele: Sapo. Era da favela que tinha na rua de trás de casa. Mas também vivia em outras ruas do bairro.

Tem um no bairro que eu moro. Ele dá uma irritada. Ele ‘late’ no meio da noite. Acorda a vizinhança toda. As vezes é engraçado. O curioso é que eu nunca o vi, só ouvi. Já vi o colchão que ele mora. Passo por ele toda manhã, indo pro trabalho.

Sempre tive uma curiosidade estranha por essas pessoas. Não em conhece-las agora. Mas saber de onde vieram, se têm família, como chegaram a essa condição. Na verdade, sempre me compadeci deles. Não uma preocupação que me tirasse da zona de conforto e fizesse algo por elas. Na verdade, sempre desviei deles. Os olhos, o caminho. Passo pelo colchão do maluquinho que ‘late’ e sequer vi o rosto dele.

Hoje eu passei, de novo, pelo colchão dele. Como sempre estava vazio, mas com a chuva intermitente de São Paulo, estava encharcado. Me deu uma pontinha de preocupação, de piedade. No meio da noite, me levantei pra fechar a fresta de janela e colocar mais um edredom, porque estava frio. E ele? Será que arranjou um abrigo, uma marquise, um ‘embaixo de qualquer coisa’ pra ficar? Mas o pensamento logo passou e eu segui o meu trajeto.

Agora estou pensando nisso novamente. E lembrei de pessoas ‘melhores’ que eu. Essa semana um amigo me contou que encontrou uma menininha vasculhando o lixo no meio da noite. Ficou indignado, voltou o carro, trocou uma ideia com a guria e deu um dinheiro pra ela. E você pode pensar: “Ah, ele agiu errado! Ela pode comprar droga ou dar na mão de um adulto alcoólatra!”. Mas eu penso: saiu da mão dele! Já não está mais com ele. O que ele pode fazer, naquele momento, ele fez. Aprendi que fome, frio, carências, a pessoa tem na hora! E é na hora que elas precisam ser supridas! Aprendi também, que fazer o bem é uma bomba. Pode explodir na sua mão ou você pode passar para mão de outra pessoa e ver explodir lá. A grana que meu amigo deu pra menininha, saiu da mão dele.

Tem muita coisa no meio disso: os impostos que eu pago e não são repassados a programas de assistência social, as igrejas que pouco têm feito pra ajudar, a sociedade civil ‘desorganizada’. Mas isso é passar batido pelo colchão e não ver o rosto de quem passou a noite ali. E culpar governo, igreja e sociedade, como se eu não fizesse parte disso.

Outra história de pessoa ‘melhor’ que eu. Há muito tempo, indo tomar café com meu irmão, um andarilho balbuciou alguma coisa quando passávamos. Dei mais uns dois passos e meu irmão voltou! Sim! Voltou! Disse ao andarilho que não ouviu. O andarilho impostou a voz: o senhor me paga um café? “sim, quanto é?” “75 centavos”. Meu irmão não tinha, tinha uma moeda de um real e deu ao homem. “Mas eu não tenho troco pra te voltar”, disse o homem. Ao que meu irmão balbuciou: não precisa, peça mais 50 centavos e tome dois cafés. O sorriso mais banguela e sincero se abriu naquele rosto. Um silêncio mortal tomou conta de nós dois naquela tarde. E ainda toma conta de mim, quando me lembro.
Nunca mais o vi. Assim como não vi mais o Sapo, o maluquinho de Mogi, e talvez o meu amigo não veja mais a menininha do lixo.

O tempo está se esgotando enquanto chove, e maluquinhos andarilhos passam e crianças vasculham lixo. Não vou resolver o problema deles, mas posso tentar se não desviar deles na rua, fingindo não ver.

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